por Maria do Rosário de O.
Carneiro
Publicado em fevereiro 12, 2016
por Redação
CASA
COMUM, NOSSA RESPONSABILIDADE.
Maria do
Rosário de O. Carneiro
A Campanha da Fraternidade de 2016, ecumênica,
organizada pelas Igrejas que integram o Conselho Nacional das Igrejas Cristãs
(CONIC) trouxe um tema de extrema relevância e importância para o cuidado com
nossa Casa Comum, o Planeta Terra.
Inspirada no texto bíblico do
Profeta Amós, a Campanha tem como tema “Casa comum, nossa responsabilidade”
e como lema “ quero ver o direito brotar como fonte e correr a justiça
qual riacho que não seca (Am 5,24).” O objetivo geral da Campanha é
conclamar para que seja assegurado a todas as pessoas o direito ao saneamento
básico.
Reconhecido pela ONU, em dezembro de 2015, como
Direito Humano, o saneamento básico envolve uma série de outros direitos, como
o abastecimento de água potável, o esgoto sanitário, a limpeza urbana e rural,
o manejo de resíduos sólidos, o controle de doenças, a drenagem de águas
pluviais, o cuidado com os rios, os nascentes e os mananciais, o combate ao uso
intensivo e extensivo de agrotóxicos, aos estragos socioambientais causados
pela mineração, dentre outros temas e direitos.
Quero me atentar para a questão dos resíduos sólidos,
um problema urgente no Brasil e no mundo, chamando atenção para o importante,
imprescindível e necessário trabalho desenvolvido pelas catadoras e catadores
de materiais recicláveis, com quem tenho trabalhado nos últimos 06 anos, na
luta por direitos e com elas e eles tenho aprendido também que é preciso
reciclar a vida, o direito e a justiça e acreditar na necessidade da justiça
social, construída coletivamente a partir dos injustiçados.
O Texto Base da Campanha da Fraternidade traz
alguns dados como os seguintes: cada brasileiro gera em média 1 quilo de
resíduos sólidos diariamente. Só a cidade de São Paulo gera entre 12 a 14 mil
toneladas diárias de resíduos sólidos. As 13 maiores cidades do país são
responsáveis por 31,9% de todos os resíduos sólidos no ambiente urbano
brasileiro. Segundo a Pesquisa Nacional de Saneamento Básico, de 2008 do IBGE,
divulgada em 2010: 50,8% do total dos resíduos são levados para os lixões;
21,5%, para aterros controlados; e 27,7%, para aterros sanitários; todos despejados
no planeta Terra.
Outro dado alarmante é o fato de o Brasil continuar
recebendo lixo da América do Norte e da Europa. Em 2009 e 2010, portos
brasileiros receberam cargas de resíduos (LIXO) domiciliares e hospitalares. No
Brasil, os lixões e aterros, sem controle, localizam-se próximos ou em áreas
residências de populações empobrecidas, nas periferias das cidades.
Várias perguntas que não podem se calar nesta
Campanha da Fraternidade, entre as quais: e os catadores de materiais
recicláveis, milhares de trabalhadores espalhados pelas ruas do Brasil, ou em
associações e cooperativas de reciclagem recolhendo o que descartamos e
evitando que milhares de toneladas de resíduos sejam jogadas em lixões e
aterros? E estes trabalhadores? Como nos aproximamos deles? Que importância
damos ao seu trabalho? Conhecemos? Falamos deles em nossas igrejas, em nossos
espaços comunitários? Dedicamos parte de nosso tempo para manifestar-lhes nosso
apoio? Quais as condições de trabalhos deles? De que precisam? Fazemos a coleta
seletiva em nossas casas, apartamentos e igrejas? Em nossos ambientes de
trabalho? E se fazemos, qual destino damos? Quem são as catadoras e os
catadores de materiais recicláveis? O que esta campanha da fraternidade nos diz
sobre eles e elas?
Com minha experiência na
advocacia popular e na militância na área dos direitos humanos, sobretudo no
trabalho com as cooperativas e associações de catadores de materiais
recicláveis e no seu Movimento Social Político – o Movimento Nacional de
Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR)[2] -,
em Minas Gerais, percebo a força dessa luta em prol da efetividade dos
direitos humanos assegurados na Constituição brasileira, forjando instrumentos
jurídicos que contribuem na implementação dos direitos fundamentais
constitucionais inscritos na Constituição, na legislação
infraconstitucional e nas políticas públicas.
A Política Nacional de Resíduos
Sólidos, Lei 12.305 de 2010, por exemplo, possui fortes contribuições da luta
dos catadores, como, por exemplo, o fato de o resíduo sólido reutilizável e
reciclável passar a ser reconhecido no Brasil como “um bem econômico e de
valor social, gerador de trabalho e renda e promotor de cidadania”[3].
Com a luta dos catadores, a lei de resíduos sólidos
trouxe também o princípio do ‘protetor-recebedor’, agasalhando neste princípio,
sem dúvida, o trabalho desenvolvido pelas organizações de catadores de
materiais recicláveis, na medida em que, diariamente, devolve para a cadeia
produtiva toneladas de materiais recicláveis – plástico, papel, metal, vidros,
dentre outros -, que poderiam ser despejados no planeta Terra. Isso sem dizer
do importantíssimo trabalho de mobilização e educação ambiental, da reciclagem
de valores, princípios e do próprio direito, realizado pelos catadores
organizados em cooperativas.
A atual Constituição brasileira de 1988 no art. 5º,
incisos XVII a XXI assegura a liberdade de associação e o cooperativismo como
modelo de economia, além de legislações infraconstitucionais que regulamentam o
cooperativismo e instituem políticas de economia popular solidária. Contudo, as
pressões do mercado e do capital hegemônico sufocam e asfixiam muitas vezes a
sobrevivência dos grupos que optam por este caminho.
O Jornal El País, em
matéria online publicada em 18/10/2015, alertou para um problema que já vem
sendo uma grave realidade no Brasil e na América Latina: “depois da água,
gestão de lixo pode ser o novo foco de crise no Brasil”.[4] A
matéria chama atenção para o fato de que, só no Brasil, em 2014, 30 milhões de
toneladas foram levadas para lixões, que são os considerados aterros
irregulares.
Levar o lixo para os aterros, lixões ou como se
queira chamar, é mantê-lo dentro do planeta Terra e, pior, de forma
ambientalmente inadequada. A Lei 12.305, de 2010, estabeleceu como prazo máximo
agosto de 2012 para que os municípios apresentassem um plano de gestão dos
resíduos sólidos e agosto de 2014 para que os municípios acabassem com os
lixões. Nenhum dos dois prazos foi cumprido pela maior parte dos municípios
brasileiros.
Com forte pressão dos prefeitos brasileiros, em
julho de 2015, o Senado Federal aprovou a prorrogação do prazo para os
municípios acabarem com os lixões no Brasil: as capitais e municípios de
regiões metropolitanas têm, agora, até 31 de julho de 2018 para fazer isto e as
cidades com mais de 100 mil habitantes terão até o final de julho de 2019. Os
municípios entre 50 e 100 mil habitantes terão até o final de julho de 2020 e
os municípios com menos de 50 mil habitantes terão até julho de 2021 para
acabar com os lixões. A Presidenta Dilma vetou esta medida, mas trata-se de um
grave problema social e ambiental urgente, uma vez que até agora os prazos não
foram cumpridos. Os direitos da população e da natureza continuam sendo adiados
em benefício dos interesses do mercado e do capital.
Com a quantidade de resíduos sólidos gerados no
Brasil crescendo em progressão quase geométrica, o cenário se tornou crítico e
preocupante. A grande atuação e investimentos por parte dos gestores públicos
giram em torno do destino final dos resíduos sólidos, chegando-se a cogitar e
até executar tecnologias de incineração, mesmo com a comprovação de que esta
tecnologia é um grave problema para o meio ambiente e para a saúde pública.
A Política Nacional de Resíduos
Sólidos estabeleceu uma hierarquia de ações a serem observadas e respeitadas
pelos gestores públicos no manejo dos resíduos sólidos, quando assim definiu: “Na
gestão e gerenciamento de resíduos sólidos, deve ser observada a seguinte ordem
de prioridade: não geração, redução, reutilização, reciclagem, tratamento dos
resíduos sólidos e disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos”.[5]
Observa-se que o destino final ambientalmente
adequado é a última etapa de uma série de ações a serem executadas pelos
gestores públicos. O destino final é a última delas, mas o que se nota na
maioria dos municípios é o destino final como a primeira, levando para lixões e
aterros todo o resíduo sem fazer uma prévia coleta seletiva, triagem e
reciclagem e fortalecendo o trabalho dos catadores.
Estudos demonstram que se os
municípios realizassem uma eficiente política de redução do consumo, educação
ambiental, implantassem uma boa política de coleta seletiva e reciclagem
popular, com a participação das organizações de catadores, pouca coisa ou quase
nada teria que ser enviado para aterros ou outros locais de destino final.[6]
Outro problema a ser levado em consideração é a
crescente disputa do “lixo” das cidades pelos setores empresariais e pela
indústria que veem neste material uma fonte de lucro e geração de riquezas.
Apesar da prioridade assegurada aos catadores e suas organizações, inclusive
com a possibilidade de contratação desses grupos pelos municípios, com dispensa
de licitação e remuneração pelos serviços prestados, poucos são os municípios
do Brasil que asseguram esta prioridade.
Estabelecer uma nova lógica produtiva, baseada no
respeito e na economia popular solidária, é o que buscam os empreendimentos de
catadores, considerando a liberdade associativa assegurada na atual
Constituição.
Os catadores, o MNCR e suas organizações seguem
resistindo, lutando pelo seu lugar neste espaço. Defendem o trabalho com
dignidade e o reconhecimento pelos serviços prestados há centenas de anos no
Brasil, na América Latina e no mundo. Retiram diariamente milhões de toneladas
de materiais recicláveis evitando que os mesmos sejam jogados em aterros ou
lixões.
Além da forte organização no
Brasil, em nível de América Latina, estes trabalhadores estão organizados pela “Red
Latinoamericana de Recicladores” e buscam dialogar entre os países com
trocas de experiências visando melhorar as condições de trabalho dos
recicladores em suas bases.[7]
O 3º Seminário Internacional de
Rotas Tecnológicas dos Resíduos Sólidos, organizado pelo Instituto Nenuca de
Desenvolvimento Sustentável (INSEA)[8] e
pelo Observatório da Reciclagem Inclusiva e Solidária (ORIS), em setembro de
2015 em Belo Horizonte, apontou para a possibilidade de reciclagem de 100% do
lixo, experiências que já vem acontecendo em San Francisco, nos Estados Unidos
da América, e em outros lugares do mundo.
No Brasil, como dito acima, a dificuldade no
cumprimento da Política Nacional de Resíduos Sólidos, como acabar com os
lixões, fazer os Planos Municipais e implantar uma eficiente política de coleta
seletiva com a participação dos catadores, aponta para dados alarmantes:
aumenta a quantidade de municípios que não recicla os materiais recicláveis e a
geração de resíduos aumentou cinco vezes mais que a população entre 2003-2014.
Os catadores, protagonistas da tecnologia social da
reciclagem popular, demandam por reconhecimento, o que passa pela remuneração
justa dos serviços prestados para as cidades e para a população, na medida em
que recolhem o material reciclável e dão um destino ambientalmente adequado. As
organizações de Catadores podem ser contratadas pelas prefeituras, inclusive
com dispensa de licitação, nos termos do artigo 24 da lei 8666 de 1993, o que
também foi uma conquista decorrente de suas lutas.
Casa comum, nossa
responsabilidade: nesse tempo em que a Campanha da Fraternidade nos convida a
refletir e agir na defesa e proteção da casa comum, fica o convite para
aproximarmos da vida e do trabalho desenvolvido pelos catadores e suas
organizações. Toneladas de matérias recicláveis que seriam jogadas no planeta
Terra, em nossos rios e oceanos são por eles reciclados, reaproveitados com um
destino final ambientalmente adequado. Mas, como vivem? Como trabalham? De que
precisam? Afinal, trabalham diariamente, por eles, por mim, por você e pelo
planeta Terra, nossa casa comum. “Vinde e vede![9]”
Belo Horizonte, 08 de fevereiro de 2016.
Artigo socializado pelo Blog do frei Gilvander Luís Moreira
in EcoDebate,
12/02/2016